Após nova lei, saneamento básico atrai investidores internacionais e grandes projetos de infraestrutura para o Brasil
País já tem ao menos 77 blocos regionais para serem licitados. Último lote da Cedae deve ser leiloado em dezembro.
O Brasil entrou no mapa de grandes investidores globais após a aprovação do novo marco legal do saneamento. A falta de acesso a água limpa e esgoto tratado é um problema estrutural histórico, que deixa o país para trás em indicadores sociais e trava a produtividade da economia; para corrigir isso, o setor necessita de aportes bilionários rapidamente.
De acordo com o Governo Federal, quase 35 milhões de pessoas não tem acesso à água tratada, das quais 5,5 milhões vivem nas cem maiores cidades do país. Além disso, 100 milhões de brasileiros não são atendidos pela coleta de esgoto. Quem vive em áreas sem estes serviços fica mais vulnerável a doenças, prejudica o desempenho escolar de estudantes e derruba a produtividade de trabalhadores.
A situação é ainda mais preocupante em um momento de pandemia, onde a adoção de protocolos de higiene é essencial para conter o avanço da doença.
Após a aprovação da nova lei, começa a avançar o processo de regionalização dos serviços de saneamento – que permite reunir em blocos áreas mais vantajosas economicamente e outras menos rentáveis. Exemplos de leilões bem-sucedidos estimulam outras prefeituras interessadas em melhorar a qualidade das condições de vida da população; dessa forma, mais municípios aderem aos modelos de concessão.
Porém, há riscos de judicialização da nova lei. Já existem tentativas de concessionárias estaduais e de partidos políticos de questionar o marco legal no Supremo Tribunal Federal (STF). Um dos principais pedidos é para que seja aceita a volta da prorrogação de contratos diretamente com prefeituras, sem licitação. Essa prorrogação vai contra o espírito do novo marco legal sancionado, que busca justamente fomentar a competição no setor em prol da melhor oferta de serviços. Também é necessário concluir a regulamentação da lei, ação que garantirá segurança jurídica a quem planeja investir no país.
A meta brasileira é universalizar os serviços de saneamento até 2033, mas o caminho até lá ainda é longo. O governo não tem recursos suficientes para garantir acesso à água tratada para 99% da população e coleta e tratamento de esgoto para 90% sozinho. A chegada do setor privado ao setor de saneamento ajuda no combate ao desperdício de água – ação imperativa diante da maior seca dos últimos 91 anos.
Pouco mais de um ano após a aprovação do novo marco regulatório do saneamento, o Brasil possui 131 blocos regionais organizados em 23 estados. Do total, 77 destes blocos estão em 14 unidades da federação que já contam com leis de regionalização de água e esgoto aprovadas.
Na prática, os blocos são os gatilhos para atrair operadoras — privadas ou públicas, via licitação, em modelos de concessão ou parceria público-privada (PPP) — para trazer novos recursos ao setor. A carteira de investimentos e outorgas do BNDES em saneamento já chega a R$ 90 bilhões, considerando os 12 leilões que contam com a participação do banco.
Ao todo, serão necessários mais de R$ 750 bilhões para garantir a meta de 99% de cobertura de água e 90% de esgotamento sanitário no país até 2033, incluindo a manutenção da rede que já existe hoje. Para efeito de comparação, foram aportados R$ 15,6 bilhões em 2019.
Para especialistas, o setor público não conta com recursos suficientes para fazer a universalização. “O marco acelera o processo porque torna uma obrigação universalizar o saneamento, estabelece metas a serem cumpridas e a regionalização, com regras de referência para acessar recursos públicos federais. Os primeiros leilões, depois consolidados com as outorgas obtidas no Rio, estão levando estados e municípios antes indecisos a aderirem ao processo. Há diversas modelagens sendo feitas. Uma coisa vai puxando a outra”, afirma Édison Carlos, presidente do Instituto Trata Brasil (ITB).
Rodrigo Maia, ex-presidente da Câmara dos Deputados e que tomou posse como secretário da gestão do Governo do Estado de São Paulo, anunciou que uma de suas prioridades é organizar a privatização da Sabesp — maior operadora de saneamento do país, companhia de capital misto e com ações em Bolsa no Brasil e nos EUA.
O marco legal exigiu dos estados a formação de unidades regionais de saneamento no prazo de um ano, reunindo blocos de municípios para tornar a universalização dos serviços economicamente viável. A adesão de cada município é voluntária.
Atualmente, operadoras privadas administram serviços de saneamento em apenas 7% dos municípios do país, cobrindo 15% da população. Com os quatro grandes leilões realizados após a aprovação da nova lei — Casal (AL), Sanesul (MS), Cariacica (ES) e Cedae (RJ) —, essa fatia deve subir para 17% da população, com a perspectiva de chegar a pelo menos 40% até 2030. A estimativa é da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon).
Percy Soares Neto, diretor executivo da Abcon, destaca que há desafios para atrair novos municípios interessados. “Minas Gerais saiu na frente e contratou o IFC (International Finance Corporation, braço de investimentos privados), do Banco Mundial, que está fazendo um trabalho robusto para a região do Jequitinhonha, de renda muito baixa e numa realidade de semiárido. O modelo [proposto pelo marco] tem de ser testado em diferentes realidades. O Amapá é outro teste, com modelo interessante de leilão, baseado em desconto na tarifa até um piso. Não é só outorga. Se forem sucesso, serão impulso a outros movimentos”, explicou Soares Neto.
O curto prazo que os estados tiveram para montar a regionalização é um ponto crítico apontado por especialistas no processo. Édison Carlos, do ITB, pondera que faz sentido focar em grandes concessões primeiro para acelerar a universalização, mas será preciso ter olhar pontual para os pequenos. “Grandes negócios não vão funcionar em todo o país, e o governo terá de induzir isso de alguma forma. A meta é universalizar, e o esforço não pode deixar os pequenos e mais vulneráveis para trás. Há empresas que fazem municípios de dez mil habitantes e são eficientes e lucrativas. É preciso usar modelagens diferentes, inovar”, alerta.
O economista Cláudio Frischtak, da consultoria Inter.B, lista outros desafios. “Haverá judicialização potencial, o cronograma de regionalização é apertado e fica o desafio de investir mais onde rende menos. Mas será uma legislação transformacional para o país”, explica o economista.
O governo do Rio e o BNDES estruturam uma nova licitação para o bloco 3 do leilão da Cedae e preveem que será possível realizar o evento ainda neste ano (os blocos 1, 2 e 4 foram leiloados). As modificações vieram após o certame realizado em abril não atrair interessados para um dos quatro blocos colocados em disputa.
O leilão realizado no início do ano gerou uma arrecadação de R$ 22,6 bilhões, além de obrigações de investimentos que somam R$ 30 bilhões. A concessão vai administrar serviços sanitários de 29 municípios fluminenses, afetando uma população de 11,7 milhões de pessoas.
Originalmente, o leilão do bloco 3 foi previsto para 22 bairros da Zona Oeste da capital e mais seis municípios (Piraí, Rio Claro, Itaguaí, Paracambi, Seropédica e Pinheiral). Com o resultado da licitação, mais dez municípios aceitaram fazer parte do bloco e também terão seus serviços licitados.
Segundo o governo do Rio, podem ocorrer novas adesões. Bloco mais barato (R$ 908 milhões) do leilão original, a concessão ficará mais cara com a entrada dos novos municípios. O valor mínimo até o momento é de cerca de R$ 3 bilhões.
Os municípios de Angra dos Reis, Barra do Piraí, Bom Jardim, Carapebus, Carmo, Itaperuna, Macuco, Rio das Ostras, São Fidélis e São José de Ubá passaram a fazer parte do projeto. “A obra deverá beneficiar cerca de 3 milhões de pessoas. A expectativa é que este novo leilão seja realizado em dezembro. O governo fez contato com todas as cidades que não participaram do primeiro edital e reforçou o convite para participar do certame”, disse o secretário da Casa Civil do governo do Rio, Nicola Miccione.
Além de incluir novas cidades, o projeto que está sendo desenhado pelo governo do estado e pelo BNDES também prevê mudanças na estruturação econômica e financeira do edital para deixar a concessão mais atraente para os investidores. A atuação de milícias em alguns dos bairros da capital que estão no bloco também foi considerada um fator decisivo para que os grupos empresariais participantes do pregão não formalizassem interesse na concessão.
O Ministério do Desenvolvimento Regional disse que tem apoiado estados e municípios na definição do modelo de prestação regionalizada do saneamento. “Essa é uma estratégia acertada para incentivar a entrada de investimentos privados, alavancar a ampliação do acesso e caminhar rumo à universalização”, afirmou o ministério em nota.
A Frenlogi endossou e apoiou a aprovação do novo marco legal do saneamento básico no Congresso Nacional. A Frente atua para desenvolver legislações que reduzam burocracias e facilitem a entrada de grupos privados na gestão de operadoras de saneamento básico.
Um dos principais problemas da administração pública é a falta de eficiência. E isso não passa apenas pela gestão: também é necessário investir pesado nas infraestruturas de água e tratamento de esgoto do Brasil. Com mais água tratada, a população adoece menos. Dessa forma, haverá redução na procura da população por serviços de saúde pública, e isso é primordial para que mais recursos públicos sejam destinados a outros problemas nacionais – o que vai contribuir para o crescimento da economia brasileira.
Fonte: O Globo